quinta-feira, 31 de agosto de 2006

O cheiro da mexerica

Aos leitores do blog: gostaria de ressaltar que a Andrea não concorda com a forma como a retratei como personagem. Deixo claro que essa é minha maneira autoral (pessoal e diferente de qualquer outro observador) de ter apurado e escrito esta história. Todo o enredo refere-se ao ponto de vista de Bernardethy. Nada foi inventado.
Adicionado em 15/07/08

"Ela me falou: ‘Mãe, hoje eu desmaiei de fome’. Antes de sair pra faculdade, tinha me pedido dois reais pra comprar lanche e eu disse: ‘Não tenho, filha’. Me marcou muito."

Bernadethy de Souza estava sentada na sala de TV da sua casa, em um sofá cor de pêssego, quando lembrava da filha Andrea, de 21 anos. Os cabelos eram lisos, pretos com esparsos fios brancos, denunciando a chegada dos 51 anos. O corpo moreno, miudinho. O sotaque nordestino, bem perceptível, apesar de quatro décadas de Goiás. A voz, suavemente rouca. Os olhos encherem d’água. Lembrou minha mãe. Vestia uma blusa de tecido leve preta com flores brancas e saia jeans. A havia conhecido dias antes, na feira livre onde trabalha ao lado do Ateneu Salesiano Dom Bosco, Setor Oeste, Goiânia.

Todos os dias ela acorda às 4 da manhã e prepara-se para trabalhar. É feirante. A escuridão da madrugada, seu funcionário Tiago e a velha Kombi surrada são os companheiros de jornada. Às vezes, Fernanda, a filha mais nova, de 20 anos, a ajuda quando não tem de ir à faculdade. A rotina se repete há 38 anos, com algumas interrupções justificadas.


A revelação
– Mas... A senhora não é a mulher do seu Vilmar – disse a costureira a Bernadethy.
– Como assim. Claro que sou – respondeu a feirante.

Ela havia saído cedo de casa, onde deixara as duas filhas pequenas para encomendar a roupa em uma das melhores costureiras do Setor Aeroviário, em Goiânia. Andrea tinha cinco anos e Fernanda, quatro. Elas recebiam atenção exclusiva da mãe que havia largado o ofício e casado assim que foi pega de surpresa com a primeira gravidez.

– Ele sempre vem aqui com outra moça pra fazer roupas... – emendou a costureira.

Mas como era possível? O casamento não é para sempre? Um homem casado não deveria ser fiel? A ficha caiu na hora. Ela tinha 30 anos quando casou grávida. A lembrança do dia do casamento simples na Igreja Católica (a igreja dele, goiano) lhe confundia. Lá na Paraíba onde nasceu, a formação fora evangélica.

“Mas afinal a Bíblia é uma só e é a mesma para todos os cristão, não é? Casamento é pra sempre. O que Deus uniu, o homem não separa. Mas quando a gente é nova, a gente é muito ingênua”.

Esquecendo-se do pedido, ela saiu de volta para a casa. O sol quente cobria a cidade. O tempo seco do Cerrado misturava-se com a fumaça preta dos veículos. Aquela curta conversa agora dividia sua vida. Todos já sabiam, vizinhos, a família dele e até amigos. Agora era sua vez.

Sua irmã fez o favor de ir conferir naquela mesma tarde em um dos lugares que ele costumava freqüentar em companhia da moça. Um namoro firme foi o que a detetive improvisada conseguiu descobrir. Daquele tipo que se anda de mãos dadas nos passeios públicos. As trocas de carinho eram despreocupadas até mesmo entre conhecidos. Bernadethy custou aceitar a identidade daquela que amava seu amado.

“Ele foi meu primeiro amor. Achei que seria para sempre. Mas as coisas são assim. Quando a gente vem da roça pra cidade, conhece muita gente, muda a cabeça, se envolve com outras coisas. A imaturidade e a gravidez nos levou ao casamento. Eu estava apaixonada. Mas, são coisas que acontecem...”

Várias vezes a outra namorada do marido havia entrado em sua casa. Trabalhava com ele em uma loja no centro comercial de Setor Campinas, conhecido pela grandes opções para tudo que envolve indústria têxtil na capital goiana. Com duas filhas pequenas dependentes em casa, eles decidiram que não seria bom ela continuar com o trabalho. Era melhor que ele batalhasse a sobrevivência da família.

Naquela mesma noite, depois que Bernadethy recebeu a notícia confirmada da irmã, Vilmar chegou em casa do trabalho. Ela havia chorado escondido. Furiosa, fez questão de deixar o rosto seco, para a conversa que teria dali a pouco na sala de TV da casa que eles alugaram para viver.

– Por que você fez isso? – perguntou ela, sem mais explicações.

Ele ficou em silêncio. Já antevia o que a mulher tinha descoberto.

– Não precisava disso – emendou ela – Era só falar que a gente se separava.
– È que tenho minhas responsabilidades com a família. Não me separei por causa dos meus pais. E tem as meninas...
– E desde quando é preciso ficar com alguém para criar bem uma família – ela sentia bem o nó na garganta.
– Eu sei...
– Sabe de uma coisa?
– O quê?
– Se for por isso, não te quero mais dentro desta casa.

O pedido, apesar de ter Vilmar de surpresa, não teve objeção. Era desejado, aliás. Calado, um simples gesto de cabeça confirmou o que a esposa pediu. Saiu de casa, com mala e tudo, naquele mesmo instante.

“As meninas ficaram com raiva muito tempo. Até pouco tempo atrás me questionavam: por que você mandou ele embora? E eu sempre tinha que explicar para elas. A Andrea foi a que mais resistiu. Tive alguns pequenos namoros durante estes últimos 16 anos. Muitas vezes elas não aceitavam o fato de eu estar com outro namorado.”

Quando diz isso Bernadethy, afina a voz e aumenta ainda mais o tom meigo. Vez ou outra, quando fala sobre o ex-marido, que continuou vendo as meninas, os olhos brilham, as mãos ficam inquietas. O sorriso sempre presente ganha um ar ainda mais tímido e nervoso.

“Tive bons relacionamentos depois. Com um rapaz mais novo que eu, por exemplo, mantenho contato até hoje, porque virou amigo. Toda vez que preciso dele pra arrumar algum problema, tipo no carro, ele vem aqui e ajuda. Mas até hoje eu não encontrei ninguém que me merecesse...”


Uma alegria
Um dia depois de se separar, Bernadethy tomou a decisão. Voltou a trabalhar nas feiras. De quinta a terça. Quarta ela descansa. “É como se fosse meu Domingo” . Dali em diante Vilmar pagou a pensão devida, mas o dinheiro não pôde sustentar completamente a casa. Dava somente para as necessidades básicas das meninas.

“É quase impossível alguém da minha idade encontrar uma colocação no mercado. Só tenho o segundo grau. Tinha até o sonho de ser enfermeira, cheguei a começar um preparatório de atendente de enfermagem e trabalhei por pouco tempo no HGG [Hospital Geral de Goiânia]. Mas tive que parar para ser mãe”.

O sonho de ser enfermeira teve que ser adiado. Madrugada após madrugada ela passou pelo fim da infância e a adolescência completa das filhas. Em 2006, ele teve uma da maiores alegrias de sua vida.

– Mãe terei que desistir do curso para tirar meu brevê? – disse Andrea, agora estudante de Ciências Aeronáuticas da Universidade Católica de Goiás.
– Ai querida, acho que sim. 700 reais está muito pesado pra mamãe.

Estagiária no Aeroporto de Goiânia, Andrea compartilhava com a mãe as dificuldades pagar o curso universitário de três anos. “Larga disso, isso é curso de rico!”, escutou várias vezes. Mas, não! Ela não desistiria.

Entendia muito bem que os 400 reais líquidos semanais que a mãe regularmente retira das feiras não estavam sendo suficientes para custear as despesas da casa, pagar o curso de Ciências Contábeis de Fernanda e completar a mensalidade do curso que exigia quase 2000 horas de vôo para tirar a permissão para voar e ser comandante. Ela decidiu, então, que acumularia o maior número possível de horas de vôo acompanhado para conseguir a carga horária necessária.

Um barulho lá em baixo, onde ficavam estacionadas as aeronaves, sobressaltou Andrea.

– Nossa vou lá. Deve ser passageiro. Quem sabe não está precisando voar.

Na parte inferior do hangar, seu Sebastião, um rico empresário, conversava com o responsável pelo local.
– Quem é aquela moça inquieta que está ali em cima.
– Ah, aquela é Andrea. Nossa estagiária. Ela é muito boa.
– Por que ela está olhando pra cá com insistência. Será que perdeu alguma coisa.
– Não sei, deve estar querendo saber se vai haver algum vôo. Ela me disse que está precisando de horas de vôo para tirar o brevê.
– Chama ela aqui. Quero ver se é boa de vôo mesmo.


Valeu a pena
Dois meses depois, Andrea recebia instruções de Sebastião, o seu Tião.

– Andrea, você tem duas opções.
– Sim. Quais?
– Ou te pago 7 mil reais brutos, e aí você precisa arcar com todas as despesas de hotel, os custos com os vôos, o transporte pela cidade. Ou te dou 1.600 livres, e cuido com o resto.
– Posso pensar?
– Claro que pode.

Depois de conversar com os pais ela decidiu pela segunda opção. Dias depois, após fazer sua primeira viagem a Palmas, onde se estabeleceria, ligou para a mãe:

– Mãe, a senhora não vai acreditar.
– O que é, filha?
– Eu tô dirigindo um carro novinho que eles arrumaram pra mim.

“Ela está muito feliz. Isso prova que a gente tem que fazer o que gosta e não o que os outros dizem pra você fazer. Quantas vezes ela escutou que filha de feirante tinha era que ir para feira trabalhar. Hoje é Comandante...”

A voz rouca frisa lentamente o cargo. Quase que não sai.

“Agora é a vez de Fernanda. A gente tá com um pouco de dificuldade de continuar pagando o curso dela que está pra ir pro segundo semestre. Talvez tenha que trancar... Não sei. Esses dias mesmo eu estava desesperada, conversado meu gerente lá no banco e ele me disse: ‘Fica calma. A gente dá um jeito. Você já conseguiu tanto coisa. Não fica estressada’. É claro que ficar rendendo um pouquinho de juros é bom para ele, mas eu acabei concordando. Já passei por tanto aperto”.


Dia de Feira
Certa vez, a feirante, filha de feirantes, a mais velha entre dez, três mulheres e sete homens, tentava ajudar uma cliente que revirava freneticamente a mercadoria exposta. Queria escolher algumas frutas. Aparentemente mal-humorada, a mulher parecia não prestar atenção no que fazia, o que preocupava a dona da banca.
A certa altura, um abacaxi amassou.

– Mas a senhora tem de levar a fruta que estragou – exigiu, da forma mais educada que conseguiu.
– De forma alguma eu vou levar algo estragado – retrucou a freguesa.

Sem paciência, a vendedora sentiu-se afrontada e começou a discutir com a mulher. Teve de se acalmar, quando a filha Fernanda, ainda adolescente, que a ajudava nas vendas, chamou-a em um canto.

– Mãe, não foi a senhora mesmo que disse que o cliente tem sempre razão?

Diante da lembrança não mais esquecida, ela apagou da memória a discussão. Com as desculpas da feirante aceitas, a freguesa que não ficou freguesa foi embora sem levar uma fruta sequer.
Esquecendo-se do ocorrido, Bernadethy continuou a descascar a cheirosa mexerica que um dia atraiu meu olfato, além do sorriso tímido.

Quando a conheci, entre um troco e outro, ela era toda concentração para conversar comigo e não deixar de dar atenção aos fregueses, muitos deles antigos conhecidos. Às 10 horas da manhã era quase impossível se lembrar que ela estava por lá desde as 4 horas. Alguns minutinhos depois, ela deixou escapar, enquanto se despedia carinhosa de uma freguesa assídua, que há poucos dias havia se dado a um luxo quase impensável para um feirante:

– Volte depois, princesa. Senti saudades de você enquanto estava de férias.