quinta-feira, 29 de junho de 2006

O Desapego é o Ganho

Esta é uma das histórias mais bonitas que conheci . Toda vez que penso em desistir de algo, me lembro dela. Há três meses tive o prazer de conhecê-la um pouco melhor. A narrativa é um pouco grande para Internet, por isso decidi publicá-la em três ou quatro frações. Acompanhe, se se interessar. Não deixe de conferir os posts de baixo. Eles são a continuação (as partes seguintes vieram abaixo das primeiras). Boa leitura.

O Desapego é o Ganho
Uma história de superação

Em meio às casas simples do Bairro Rio Vermelho da cidade de Goiás, em um pequeno sobrado de tijolos aparentes, vive a irmã Arcelina Helena Públio Dias. Há pouco mais de oito anos, quando ela chegou ali, não havia muita infra-estrutura no novo bairro periférico da pequena cidade. Andar por lá exige esforço das pernas: as pequenas subidas e descidas parecem inofensivas, mas é preciso resistência para enfrentar os acidentes geográficos encontrados no caminho. Hoje, pelo menos, é possível caminhar por algumas das ruas pisando na firmeza do asfalto que cobriu a terra seca e poeirenta, típica do cerrado.

Chegar à casinha na primeira vez é complicado para quem não conhece bem a cidade. Os tijolos aparentes estão longe da tradicional Casa de Cora Coralina, as praças do Coreto e do Chafariz, Museu da Boa Morte e a Igreja de Santa. Na entrada há uma pequena cerca de arame que separa a calçada de concreto, ainda limpo da sujeira do tempo, de um pequeno e rasteiro jardim. O portão, que na verdade é uma porteira de madeira rústica, é sustentado por dois mastros, um de cada lado. De um deles se ergue uma pequena placa que anuncia: "Casinha do Menino Jesus".

A bata longa verde musgo, de barras brancas bordadas em linha de crochê, os curtos cabelos lisos e castanhos, presos por uma tiara, e os chinelos de dedo indicam que a irmã está bem a vontade depois de uma tarde de caminhada pela cidade. Ela tem 62 anos, mas aparenta 40. O corpo bem conservado e esbelto deve ser fruto das caminhadas diárias. A pele morena é jovial. Na verdade, o sorriso sereno que sempre traz lhe garante a vitalidade. Na varanda de chão de cimento liso, um frescor sobe pelo ar no meio da tarde agradável de abril. Um cheirinho de limpeza emana de dentro da casa, bem organizada. Dali a pouco, a diarista que faz a limpeza semanal se despediria, feitas algumas recomendações pela dona da casa.

Um banco de madeira com capacidade para quatro ou cinco pessoas compartilharem a brisa servia de apoio para os pés de Arcelina antes dela abrir o portão. Estava sentada em uma cadeira de fios coloridos, dessas encontradas na frente das típicas casas goianas, onde se gosta de uma boa conversa nos fins de tarde ou de montar guarda a fim de ficar a par de tudo que acontece na rua.

– Mas vamos ter de fazer foto?
– Se a senhora permitir, seria melhor...
– Com essa roupa não ficaria bom. Estou muito a vontade.
– Geralmente a gente tenta caracterizar a pessoa dentro daquilo sobre o que estamos falando. Por exemplo, a senhora poderia estar usando um hábito ou vestimenta que tenha a ver com o Mosteiro Beneditino.


Mais ou menos trezentos metros distante dali, indo pelos sinuosos caminhos do bairro de lotes baldios cobertos por um mato alto, depois de um córrego que cheira a esgoto ("Quando cheguei ele era limpinho e bonito e hoje está assim"), estava o Mosteiro da Anunciação da cidade de Goiás. Lá Arcelina havia passado seus primeiros anos na cidade. A ordem beneditina resolveu construir o centro naquele local na década de 1980. Na época, a cidade não havia chegado até ali, condição que determinou a construção do mosteiro. A caminhada é essencial para que o monge entre em contato com a comunidade que o abriga. Seu meio de transporte tem como motor a força do corpo.

– Eu tinha uma bicicleta que me levava para todos os lados. Até que um dia, em uma dessas subidas, perdi o controle e caí. Sabe como é. A idade vai chegando e não posso ficar extrapolando os limites do corpo. Dei a bicicleta para a vizinha ali.

O dedo aponta para uma humilde casa, que mais cedo tinha à porta duas meninas pequenas, brincando, com cabelos despenteados e vestidas somente com calcinhas coloridas.

quarta-feira, 28 de junho de 2006

O Desapego é o Ganho - Segunda Parte

– Como posso denominar a senhora? Monja?
– Não, não sou monja. Sou oblata. Como sei que vai ter explicar isso para o leitor, você pode dizer que é a mulher religiosa que, pelo fato do mosteiro ser somente masculino, é consagrada para tomar parte na ordem.

Ela sabe porque já esteve do outro lado. Com freqüência, retoma a posição.

1975, França.

Com alguns anos de graduada e com experiência em redação, a jornalista Arcelina, nascida e estudada na capital paulista, vai à França fazer seu mestrado. Ela consegue aliar o estudo com a prática da profissão que escolheu, sendo correspondente do Jornal do Brasil na Europa. A atividade, um ano mais tarde, lhe renderia convite para trabalhar na novíssima Universidade de Brasília. Na capital federal, começa a cobertura local pelo jornal o Estado de São Paulo. Ditadura. Ela e os colegas de redação conhecem bem de perto a mão castradora da censura militar. Quem a conheceu na vida agitada dessa época, talvez se surpreendesse ao vê-la, trinta anos mais tarde, como uma oblata beneditina, desprovida de qualquer necessidade de casarões, carros, roupas caras e dinheiro abundante.

1996, Brasília.

A morada é uma rica casa do Lago Norte. Separada, depois de passar onze anos casada com o pai de seu único filho, Pedro, e um ano após escrever o livro "Crônica do Salário Mínimo", onde conta a experiência de viver com mínimo, Arcelina passa pela pior provação de sua vida.
A imprensa, reunida no cemitério, causa uma movimentação incomum à intimidade pertinente nessas ocasiões. O acontecido chocou a atenção pública na cidade nas últimas horas. A correria ainda não havia permitido muita reflexão até aquele momento. A imagem forte e presença de muita gente povoa suas preocupações. A certidão de óbito não esclarece muito. Diz somente a causa da morte: afogamento.

– Ninguém duvide do amor de Deus por Pedro e por todos – diz emocionada aos presentes.

Arrepio.

2000, Brasília.

O jornal Correio Braziliense para o qual prestou colaborações, traz Arcelina de volta às manchetes. No Lago Norte, a rica casa está vazia. Um óleo sobre seda de Hélio Oiticica de 6 mil dólares, um óleo sobre tela de Antônio Poteiro de 1.800 reais, um óleo sobre tecido de Cláudio Tozzi, 6 mil reais, quase todo o mobiliário, algumas recordações de viagens feitas a mais de 50 países, bens de uma vida toda, serão vendidos dali a dias em um bazar na SHIN QL 02, conjunto 10.

O repórter João Luiz Marcondes justifica em sua matéria: "Desde agosto do ano passado, ela mora no Mosteiro da Anunciação, na cidade de Goiás, numa vida de retiro, preces, meditações e silêncio. No próximo Domingo de Páscoa, ela parte para uma fase do projeto de vida que escolheu para si: peregrinar pelos continentes se inserindo entre populações pobres de diferentes regiões. (...) Toda renda será usada na viagem, certo? Não. A jornalista, que agora se dedica a escrever livros sobre suas peregrinações, resolveu doar todo o dinheiro que conseguir. A renda vai para a Comunidade Terapêutica Senhor Jesus, uma instituição filantrópica que cuida da reabilitação de dependentes químicos vindos de famílias carentes. ‘Pretendo salvar algumas vidas’, diz ela, que, infelizmente, acabou vendo o filho único morrer por conta da dependência de drogas químicas, há dois anos e meio. Pedro, que tinha 20 anos, morreu afogado no Lago Paranoá".

terça-feira, 27 de junho de 2006

O Desapego é o Ganho - Terceira Parte

11 de março de 2006, Goiânia / cidade de Goiás.

Já são mais de nove da noite e lá iam alguns minutos de uma ligação interurbana.

– A senhora desculpe a hora, mas é que precisava falar ainda hoje.
– Não tem problema. Acabei de chegar do Mosteiro. Estamos com uma programação especial para a Semana Santa.
– Bem, melhor assim... É que pretendemos contar algumas histórias de superação neste Domingo de Páscoa no jornal O Popular e lembramos da sua. Queria saber se a senhora se importaria de conversar comigo amanhã.

Silêncio por alguns instantes.

–É um assunto que ainda mexe comigo. Tenho que pensar. Não sei se quero recordar... Mas de qualquer forma vocês virão para a cidade?
– Sim. Vamos cobrir a Procissão do Fogaréu.
– Vão almoçar onde?
– Não sabemos, em um restaurante da cidade provavelmente.
– Então almoço com vocês. Aí te dou uma posição.

12 de abril, cidade de Goiás.

Hora do almoço. O cenário é um restaurante em estilo colonial do centro histórico de Goiás. Momentos antes, os caminhos percorridos pelo bairro Rio Vermelho pareciam mais tortuosos com o atraso de quase uma hora na viagem. Perder-se foi inevitável. O problema foi contornado por um breve telefonema. Vestida com uma camiseta amarela, calça jeans e tênis, Arcelina coloca no prato um pouco de arroz, feijão, alguns legumes e um vistosa salada de alface verde e tomate. A bebida é suco de laranja, porque não bebe a Coca-Cola que financia a guerra de Bush.

– Conversei com o frei Marcelo Barros. Ele me disse: ‘você não os procurou. Foram eles que vieram a você’.
– Garanto que não haverá sensacionalismo ou coisa do tipo.
– Sei. Eu ainda acredito muito no jornalismo.
– Isso é bom.
– Ele me disse ‘aceite o que vem’. E estou fazendo muito isso: aceitando o que vem.

4 da tarde. O carro estaciona rente à calcada com cara de nova e a porteira de madeira rústica é aberta. Enquanto a conversa flui, depois de trocar a bata verde musgo por uma camisa branca e uma longa saia escura, Arcelina deixa conhecer a casa. São cerca de sete metros por sete metros. A pequena cozinha é conjugada com a sala. À porta, duas grandes partes de madeira se juntam para cerrar a casa quando preciso. Nesta ocasião, o Sol e a Lua, desenhados um em cada parte da porta dupla, se juntam em uma espécie de comunhão. Lacrando a entrada, eles ficam sob os dizeres que também são encontrados em todo mosteiro: "Bem vindo, sua visita é a visita do Cristo". Um pequeno sofá de três lugares é adornado por simples almofadas coloridas. Ao seu lado, o único móvel que ela quis pegar de herança da mãe falecida, quando tudo foi repartido entre os irmãos: um belo armário escuro que guarda, entre outros pertences, livros. Outras publicações se apinham em pequenas prateleiras suspensas na parte baixa das paredes.

Ao fundo, um quarto que recebe irmãos da Igreja em visita à cidade e que não podem ficar no mosteiro. Ao lado da porta desse quarto, uma escada em espiral leva à parte de cima casa, onde está o quarto de Arcelina. Atrás da escada, uma enorme bandeira do Movimento dos Sem Terra se estende adornando a parede. No pequeno aparelho de tocador de CD soa uma versão instrumental de O Cravo Brigou com a Rosa e algumas outras cantigas de roda. Fazem parte do projeto Cantilena Artesanal, grupo de jovens e adolescentes da cidade que produzem os instrumentos com material reciclado, e ao qual ela ajuda.

As fotos devem ser feitas logo, porque o Sol já está para se pôr. O cenário ideal é a pequena capela que foi construída em anexo à casa, no quintal, há pouco mais de um ano. Uma caixa em que está o Santíssimo, onde hóstias consagradas ficam alojadas à espera da comunhão, é acompanhada por banquetas para se ajoelhar, a imagem dependurada de Nossa Senhora de Guadalupe, a imagem de Cristo ressuscitado esculpida na madeira por presidiários da Casa de Prisão Provisória de Goiás e tapetes coloridos tecidos por mulheres de um assentamento de sem-terra. Tudo arrumado por ela. No caminho até lá, Arcelina mostra orgulhosa as pequenas árvores frutíferas plantadas por ela mesma no quintal: pés de mandioca, milho, jabuticaba, tamarindo, abacate, seriguela e banana.

A tarde cai e Arcelina se apressa para mostrar o Jardim da Anunciação. Ele tem compromisso no mosteiro naquela noite. A três quadras dos tijolos aparentes, a propriedade comprada com parte do dinheiro arrecadado em Brasília é um verdadeiro viveiro de plantas nativas do cerrado. O terreno acidentado dificilmente permitirá a construção de paredes sem um milagre de engenharia. Mas ela ainda não quer levantar muros ali. O lugar contém um singelo e simpático parque infantil com balanço e gangorra para crianças e uma mandala desenhada no chão para conversas em torno da árvore que está ao centro. Ele é usado para reuniões religiosas e dos trabalhos que ela conduz na comunidade. Preocupada em parecer vaidosa com eles, quase não os enumera. Dentre os que vem à tona, um projeto de assistência a mulheres, um de incentivo à leitura para crianças pobres e uma parceria de atendimento psicológico.

– Aprendi que vida espiritual não é aquisição. É desapego.

quarta-feira, 21 de junho de 2006

O Desapego é o Ganho - Parte Final

16 de abril de 2006, Domingo de Páscoa, Goiânia.

O segundo caderno do maior jornal de Goiás traz seis histórias reais de pessoas que conseguiram superar as mais difíceis situações e deram outro sentido às suas vidas. A página oito é aberta com uma enorme e bela foto de irmã Arcelina na capela de sua casa. A matéria de exatas 40 linhas destaca que, depois de dois livros-reportagem escritos (um sobre a África e outro sobre as Américas), em outubro ela parte para Europa, berço dos primeiros mosteiros do mundo. Lá, talvez consiga inspiração para pôr em prática seu objetivo maior. Sua próxima grande missão – construir um mosteiro feminino em Goiás – é resumida em uma frase de Santa Teresa D’ávila. Ela pode ser lida no quadro que fica no altar da sala, ao lado da imagem de São Bento e da foto de Pedro: "Por um mosteiro que seja singelo e não faça barulho ao ruir no dia do juízo final".