terça-feira, 27 de junho de 2006

O Desapego é o Ganho - Terceira Parte

11 de março de 2006, Goiânia / cidade de Goiás.

Já são mais de nove da noite e lá iam alguns minutos de uma ligação interurbana.

– A senhora desculpe a hora, mas é que precisava falar ainda hoje.
– Não tem problema. Acabei de chegar do Mosteiro. Estamos com uma programação especial para a Semana Santa.
– Bem, melhor assim... É que pretendemos contar algumas histórias de superação neste Domingo de Páscoa no jornal O Popular e lembramos da sua. Queria saber se a senhora se importaria de conversar comigo amanhã.

Silêncio por alguns instantes.

–É um assunto que ainda mexe comigo. Tenho que pensar. Não sei se quero recordar... Mas de qualquer forma vocês virão para a cidade?
– Sim. Vamos cobrir a Procissão do Fogaréu.
– Vão almoçar onde?
– Não sabemos, em um restaurante da cidade provavelmente.
– Então almoço com vocês. Aí te dou uma posição.

12 de abril, cidade de Goiás.

Hora do almoço. O cenário é um restaurante em estilo colonial do centro histórico de Goiás. Momentos antes, os caminhos percorridos pelo bairro Rio Vermelho pareciam mais tortuosos com o atraso de quase uma hora na viagem. Perder-se foi inevitável. O problema foi contornado por um breve telefonema. Vestida com uma camiseta amarela, calça jeans e tênis, Arcelina coloca no prato um pouco de arroz, feijão, alguns legumes e um vistosa salada de alface verde e tomate. A bebida é suco de laranja, porque não bebe a Coca-Cola que financia a guerra de Bush.

– Conversei com o frei Marcelo Barros. Ele me disse: ‘você não os procurou. Foram eles que vieram a você’.
– Garanto que não haverá sensacionalismo ou coisa do tipo.
– Sei. Eu ainda acredito muito no jornalismo.
– Isso é bom.
– Ele me disse ‘aceite o que vem’. E estou fazendo muito isso: aceitando o que vem.

4 da tarde. O carro estaciona rente à calcada com cara de nova e a porteira de madeira rústica é aberta. Enquanto a conversa flui, depois de trocar a bata verde musgo por uma camisa branca e uma longa saia escura, Arcelina deixa conhecer a casa. São cerca de sete metros por sete metros. A pequena cozinha é conjugada com a sala. À porta, duas grandes partes de madeira se juntam para cerrar a casa quando preciso. Nesta ocasião, o Sol e a Lua, desenhados um em cada parte da porta dupla, se juntam em uma espécie de comunhão. Lacrando a entrada, eles ficam sob os dizeres que também são encontrados em todo mosteiro: "Bem vindo, sua visita é a visita do Cristo". Um pequeno sofá de três lugares é adornado por simples almofadas coloridas. Ao seu lado, o único móvel que ela quis pegar de herança da mãe falecida, quando tudo foi repartido entre os irmãos: um belo armário escuro que guarda, entre outros pertences, livros. Outras publicações se apinham em pequenas prateleiras suspensas na parte baixa das paredes.

Ao fundo, um quarto que recebe irmãos da Igreja em visita à cidade e que não podem ficar no mosteiro. Ao lado da porta desse quarto, uma escada em espiral leva à parte de cima casa, onde está o quarto de Arcelina. Atrás da escada, uma enorme bandeira do Movimento dos Sem Terra se estende adornando a parede. No pequeno aparelho de tocador de CD soa uma versão instrumental de O Cravo Brigou com a Rosa e algumas outras cantigas de roda. Fazem parte do projeto Cantilena Artesanal, grupo de jovens e adolescentes da cidade que produzem os instrumentos com material reciclado, e ao qual ela ajuda.

As fotos devem ser feitas logo, porque o Sol já está para se pôr. O cenário ideal é a pequena capela que foi construída em anexo à casa, no quintal, há pouco mais de um ano. Uma caixa em que está o Santíssimo, onde hóstias consagradas ficam alojadas à espera da comunhão, é acompanhada por banquetas para se ajoelhar, a imagem dependurada de Nossa Senhora de Guadalupe, a imagem de Cristo ressuscitado esculpida na madeira por presidiários da Casa de Prisão Provisória de Goiás e tapetes coloridos tecidos por mulheres de um assentamento de sem-terra. Tudo arrumado por ela. No caminho até lá, Arcelina mostra orgulhosa as pequenas árvores frutíferas plantadas por ela mesma no quintal: pés de mandioca, milho, jabuticaba, tamarindo, abacate, seriguela e banana.

A tarde cai e Arcelina se apressa para mostrar o Jardim da Anunciação. Ele tem compromisso no mosteiro naquela noite. A três quadras dos tijolos aparentes, a propriedade comprada com parte do dinheiro arrecadado em Brasília é um verdadeiro viveiro de plantas nativas do cerrado. O terreno acidentado dificilmente permitirá a construção de paredes sem um milagre de engenharia. Mas ela ainda não quer levantar muros ali. O lugar contém um singelo e simpático parque infantil com balanço e gangorra para crianças e uma mandala desenhada no chão para conversas em torno da árvore que está ao centro. Ele é usado para reuniões religiosas e dos trabalhos que ela conduz na comunidade. Preocupada em parecer vaidosa com eles, quase não os enumera. Dentre os que vem à tona, um projeto de assistência a mulheres, um de incentivo à leitura para crianças pobres e uma parceria de atendimento psicológico.

– Aprendi que vida espiritual não é aquisição. É desapego.

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